Sexo ardente

Há quase vinte anos, Madonna potencializava sua fama ao lançar o conceito de sensualidade pop-musical com o álbum Erotica. A cantora quebrava as barreiras ao expressar nas letras, melodias e clipes de suas canções questões sobre a feminilidade e o poder de liberdade sexual. O álbum ganhou admiração maior por parte de comunidades homossexuais, pois enxergava ali um testamento contra a hipocrisia, puritanismo e preconceito. Madonna provocou e polemizou ainda mais ao lançar o livro "Sex", exibindo-se em fotos picantes e sensuais — o conceito deste trabalho era como uma consequência do trabalho feito no Erótica, espécie de adendo. A cantora causou controvérsia e gozava de sua maior exposição, mostrando claramente que a imagem de erotismo era algo intrínseco a sua figura pública. Aproveitando-se dessa maior nitidez da fama viabilizada através da sensualidade, o cineasta Uli Edel a convidou para personificar a luxúria em seu novo trabalho. O objetivo era promover um espetáculo libidinoso e o maior mérito seria conceber cenas de nudez e sexo-selvagem sem nenhum traço de censura. O soft-porn Corpo em Evidência foi lançado na busca por mais um sucesso proveniente desse senso de malícia da cantora. Não teve nítida bilheteria de público, porém incutiu o choque em vários países onde foi lançado, ainda que a censura tenha sido alimentada já que o Brasil, por exemplo, tenha classificado o filme como “impróprio para menores de 18 anos”.

A trama coloca Madonna como a principal suspeita num crime inusitado. Quando um milionário é encontrado morto em sua cama, as acusações caem sobre Rebecca Carlson (Madonna), a amante que aparece em imagens de sexo gravadas numa fita de vídeo. Levada ao júri, a acusação alega que o homem fornicou até a morte — vítima de ataque cardíaco conseqüente de sexo imoderado. É então que entra o advogado Frank Dulaney (William Dafoe), um homem que acredita na inocência de Rebecca, investe sua força para defendê-la. Sob esses sensos óbvios, a trama coloca a típica questão de um crime e retratação do tribunal para promover seu intuito: evidenciar, ao máximo, o caráter dúbio e sexualizado dessa protagonista. Obviamente, Rebecca envolve-se num jogo de sedução com Frank, tornando o posicionamento policial do roteiro em segundo plano. O texto de Brad Mirman é bastante frágil e não tem receio em concentrar sua intenção erótica, tornando combustão da narrativa o apelo carnal que situa o prazer como centro de tudo.

Corpo em Evidência é o plano perfeito para executar a força da sensualidade de Madonna em cena. Ora, se como atriz dramática ela demonstra insegurança e deslizes por conta de uma artificialidade interpretativa, é nas seqüências onde potencializa seus dons libidinais é que consegue sustentar o teor hipnótico. O público mais conservador pode se chocar com certas situações expressas no filme, já que o envolvimento de Frank com Rebecca condiciona-se num jogo de sedução no limite da violência e da transgressão sexual — logo sabemos que Rebecca é uma mulher viciada em sexo, perversão e sadomasoquismo. E através disso que o filme se afirma com cenas carregadas de malícias em busca da atração do público que procura um filme dotado de pecado, malícia e sexualidade mais marginal. E há ainda espaço para a colocação do elemento traição: Frank é casado com uma mulher pacata (Julianne Moore) e o casamento é colocado em jogo em função de seu caso tórrido com sua cliente.

Ainda que se afirme num discurso bem superficial, já que a tônica do suspense aqui é pouco proveitosa — o roteiro mostra o julgamento de Rebecca e fatos são explorados como forma de tornar dúbias sua intenção ou não de assassinato —, Uli Edel é astuto na conservação do tom sexual que seu filme precisa impor ao público. Inúmeras cenas exploram o corpo nu de Madonna, sob uma fotografia sempre na cor avermelhada, a câmera curiosa percorrendo cada parte do corpo em close, isenta de inibição. Rebecca representa uma mulher livre de repressões, por isso é permissiva a sua libertinagem e detesta o que há de mais conservador no terreno do ato sexual. E o filme mostra essa mulher livre de tabus, predestinada aos múltiplos orgasmos, em busca do sexo mais intenso possível. Daí se introduz cenas de sexo efervescentes dela com Frank — Madonna e William Dafoe comandam seqüências pontuadas de perversão, bem carnais e sem timidez. Não é à toa que a famosa seqüência é quando os dois transam à meia-luz: Madonna derrama a cera quente da vela sob o corpo de Dafoe que geme de prazer, dominado pelo sexo agressivo de uma fêmea lasciva. Este momento é tido como símbolo fetichista por muitas pessoas; de fato é uma cena icônica que caracteriza bem a colocação de um coito mais animal, despudorado. São momentos bem provocadores e que é preciso coragem por parte dos atores para poder convencer já que o grau de “realismo sexual” é ousado — e o roteiro ainda brinca com situações, como na cena onde Rebecca masturba Frank dentro de um elevador lotado.

Pode-se dizer que seja um filme satisfatório, somente, no quesito de sua personalidade sexual. Porém, a direção é morna e distante, além do roteiro ser bem característico dos principais filmes de suspense rasos televisivos. Madonna convence no papel de mulher libertina, sexo quente e atitudes masoquistas — mas nem mesmo o roteiro consegue dimensionar uma maior complexidade, tornando sua caracterização e motivações no limite da superficialidade. William Dafoe é um ator dedicado, surpreende até pela atitude erotizada que se permite, apesar do filme todo ser mais um apelo para Madonna mostrar sua disposição fetichista. Contudo, não é uma obra necessária, é perceptível que até envelheceu ao longo dos anos. Um trabalho orgasmático, mas que não deixa marcas no corpo da cinematografia.

Body of Evidence (EUA, 1993)
Direção de Uli Edel
Roteiro de Brad Mirman
Com Madonna, William Dafoe, Joe Mantegna, Anne Archer, Julianne Moore

15 opinaram | apimente também!:

Sintia Piol disse...

Ai, Madonna não me dá tesão. Acho que Tony, naquele seu aniversário histórico, kkkkkkkkkk, estava mais delirante do que ela nesse filme. Tudo me soou nas caras e bocas dela muito falso, mas enfim, a ousadia do filme já merece uma indicaçãozinha apimentada! ;)

Gabriel Neves disse...

"Erotica... Romance... I'd like to put you in a trance..."
Eu perdi todo o meu último comentário, então vou resumir bem o que eu tinha escrito: parece ser um ótimo filme pro Apimentário, cheio de referências sexuais que, ao meu ver, parecem estar até em excesso no filme. E é uma obra que eu não veria. Ao menos eu acho. Quando li o nome de Madonna, falei que nunca ia ver. Agora li Julianne Moore e estou repensando.
Abraços!

Unknown disse...

Cara, eu lembro muito bem qd esse filme foi lançado, ele veio na esteira de INSTINTO SELVAGEM, mas não chega nem perto. É fraco que doi e talvez funcione mais como um softcore mesmo. Da Madonna, até hj curto mais NA CAMA COM MADONNA. Abs!

Tiago Britto disse...

Você mesmo disse que o filme é fraco e superficial e eu também não acho a Madona Atraente, mas fiquei curioso para ver até aonde vai essa vontade dela de ser sexy e o "Soft Porno" Dela...é mais pesado que Emanuele? rs rsrs

Gustavo Pavan disse...

Madonna não desce mesmo.
Mas como não reconhecer um texto tão encantador?
Parabéns, cara.

Anônimo disse...

O texto tá sensual, assim como o filme. Madonna sempre teve essa obsessão como cinema. Evita foi um bom acerto. Acho o filme mediano e gosto como a sexualidade é retratada. Ricke

Anônimo disse...

Madonna, polêmica como sempre foi.
Parabéns pelo texto, rico em detalhes.

Márcio Sallem disse...

Madonna nos cinemas nunca foi lá grande coisa (e W. E. - O Romance do Século vem sedimentar de uma vez por todas isto), mas é engraçado como a cantora já assumiu tantas faces diferentes que é impossível não reconhecer sua genialidade, erótica, country, dance, material, dentre outras.

Sandra Cristina de Carvalho disse...

Eu assisti a esse filme há muitos séculos atrás, srsr e me recordo de ter dito que o filme foi feito apenas para mostrar a nudez e a sensualidade da cantora. Mais nada.
O roteiro é insosso, a atuação da Madonna é artificial, ela é mais erótica em suas performances como cantora do que como atriz.
Acho a Madonna sexy, e hoje é ainda mais bela e mais natural que há 20 anos atrás. Já não recorre às famosas caras e bocas, já é mais segura como mulher sensual que reconhece ser.
Porém o seu texto é sempre muito construtivo. Como sempre, suas críticas são isentas de depreciações(quisera que o Rubens Ewald Filho fosse assim). Sua resenha é focada numa narrativa realística, retratando a sinopse tal qual ela realmente é, contudo você usa uma linguagem analítica que o torna diferenciado. Suas descrições são tão moldadas de detalhes, que, apesar do roteiro frágil, ainda assim, ficamos tentados a assistir ao filme para conferir.
Parabéns pela belíssima resenha!
Beijos!
Sandra Cristina.

Kamila disse...

Eu tinha esse filme em VHS, numa coleção da Folha de SP, mas nunca assisti. Conheço os comentários sobre essa obra e acho que ela é até condizente com o período que Madonna vivia, naquele momento, até mesmo, em sua carreira, tendo em vista o lançamento de "Erotica" e o clipe de "Justify my Love".

Kamila disse...

Eu tinha esse filme em VHS, numa coleção da Folha de SP, mas nunca assisti. Conheço os comentários sobre essa obra e acho que ela é até condizente com o período que Madonna vivia, naquele momento, até mesmo, em sua carreira, tendo em vista o lançamento de "Erotica" e o clipe de "Justify my Love".

Luís disse...

Estou há bastante tempo para ver esse filme, mas simplesmente não consigo vê-lo. Não que eu não queira, mas sempre surgem outros títulos e esse me esquece de ver, então acaba ficando pra trás.

Mas seu texto me motivou a vê-lo, vou tentar conferi-lo, mesmo que seja só para assistir a mais um interpretação duvidosa da Madonna.

Ailton Monteiro disse...

Eu vi essa bagaça no cinema, na época em que foi exibido.

Adecio Moreira Jr. disse...

Não sou grande fã de Madonna, mas reconheço a grande contribuição dela no mundo pop, principalmente por exteriorizar tanta libido em prol da expressão.

Júlio Pereira disse...

Fiquei assustado só de olhar essa capa. Bizarro! A Madonna no Cinema é um caso quase perdido - vide W.E. Nem sabia desse Sexo Ardente. Apesar disso, Dafoe é sempre sensacional e Julianne Moore um arraso... Se fosse ver, seria pelos dois!

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