O Pornógrafo Envaidecido?

O dramaturgo Oscar Wilde criou polêmica em 1890 quando publicou um importante livro, a euforia foi tanta que ele precisou escrever cartas a jornais para seus detratores. Considerada como um texto pervertido sobre a imoralidade e sexualidade homoerótica, o livro evidenciou o falso puritanismo vitoriano da Inglaterra na fase de seu lançamento. O Retrato de Dorian Gray já foi adaptado diversas vezes, tendo uma versão mais conhecida de 1945. Contudo, esta nova adaptação — além de ter em sua essência toda a ousadia do texto quente e questionador de Wilde — consegue ser um trabalho ainda mais contundente. Este filme tem o material literário de Wilde adaptado por Toby Finlay, a direção de Oliver Parker. Dorian Gray (Ben Barnes) é um jovem da alta sociedade que, em função de sua beleza, capta a atenção de todos. É quando se torna foco de inspiração do pintor Basil Hallward (Ben Chaplin) e tem um quadro seu pintado por ele — resultado de um esforço criativo, o retrato de Dorian surpreende ao término pela beleza, expressão e talento. O quadro intriga a todos. É possível captar toda a beleza física e expor numa pintura? Dorian fascina-se pelo trabalho, confronta-se com a beleza de seu retrato e, diante da impossibilidade de se manter jovem eternamente, promete sua alma em troca da possibilidade de juventude. Quando conhece o Lord Henry Wotton (Colin Firth), seu destino sofre a catarse — Dorian passa por um aprendizado malicioso, entrega-se a uma vida libertina e aos prazeres carnais da sexualidade desenfreada. É possível ser belo eternamente? Como viver só de sexo e do ardor da juventude que prioriza o orgasmo? À medida que as aventuras sexuais são constantes, influenciado pelo Lord, Dorian nota que seu quadro revela-se como algo perturbador - o retrato passa a receber suas marcas de envelhecimento, cicatrizes e reflexos de seus atos. Mas, ele próprio não envelhece, mantendo-se com os mesmos traços angelicais de seus 18 anos. Eis o apelo macabro proposto por Oscar Wilde, pois questiona o senso da juventude eterna, dos valores morais e da imaturidade humana.

O filme evidencia mais a perversão sexual, o senso de erotismo é evidente ao demonstrar Dorian em suas buscas sexuais — o garoto permite-se às influências de Lord Henry, transformando-se num boêmio libertino. Percorre os bordéis do submundo da sociedade para seu coito casual. Envaidecido pelo seu poder de sedução, consegue conquistar e fascinar mulheres casadas, prostitutas — há nele um prazer maior em, inclusive, transar com virginais. O seu universo é reduzido às transas sexuais que inflama seu ego fútil, na condição de um homem que alia-se da imortalidade para vivenciar todos os anseios da carne. Ao lado do cínico, dúbio e misterioso Lord Henry Wotton — a realidade de jogos de sedução, de orgias sexuais e de malícia ganha contornos na vida de Dorian. Embriagado num mundo de luxúria, ele representa o tormento de uma juventude que se firma no caos do sexo imoderado — é possível estabelecer uma vida no sexo casual? E como não envelhece, sua beleza garante os rituais orgiásticos que o satisfaz. Seu único interesse sentimental é expresso a Sibyl Vane (Rachel Hurd-Wood), uma atriz de teatro que contesta a promiscuidade de Dorian por querer firmar laços de compromisso com ele. Contudo, Dorian predestina-se à luxúria que corrói seus sensos de fidelidade, moralidade, integridade. Como o sexo pode alucinar as percepções humanas? A vaidade é uma cegueira que corrompe os seres?

O tom homoerótico é evidenciado ao colocar Dorian como foco de desejo de homens ao seu redor — inclusive, é objeto de tesão do pintor Basil que nutre por ele uma admiração, um interesse sexual evidente em diálogos sensuais. A condição de Dorian, um homem altamente sexualizado, evidencia-se também pelo gosto de relacionamentos com o mesmo sexo — além do desejo hetero, acrescenta-se a homossexualidade. O filme expõe as sutilezas que o livro de Oscar Wilde incutiu, tornando-o mais sensual em cenas de sexo ou flertes estabelecidos pelos personagens masculinos. Dorian parece intrigar sexualmente até o Lord Henry. O contexto homoerótico é nítido quando expõe o gradual interesse, excitação e envolvimento de Dorian por garotos que são inseridos em suas orgias privadas — é cruel como o personagem não se prende emocionalmente com ninguém, apenas transmuta seu apego a manipulações de suas investidas sexuais constantes. A perversão adquire contornos maiores quando Dorian busca sexo sadomasoquista, com experiências provocadas pelos seus fetiches, numa condição insana de sentir e receber prazer através do sofrimento físico - o sexo é comprometido com orgias intensas, sangue e dor.

As marcas do pecado de Dorian Gray refletidas em sua pintura corroem suas veias, é o estopim de sua loucura. Seu caráter é simbolizado no quadro horrendo distorcido — todas as feridas da alma torturada dele aparecem ali. Cicatrizes, envelhecimento, todos seus atos refletidos no retrato que se torna um assombro a sua vida. O que parecia um prazer eterno, reflete uma maldição? A pintura concebe aflição no homem que vê que a beleza não é tudo, nem mesmo o sexo desnorteado — Dorian aflige-se com seus traços perfeitos, numa vida firmada na mais banal superficialidade da existência vazia. E seu retrato exprime todas as marcas do tempo, do seu comportamento negro ao longo dos anos.

A película mantém toda a excitante essência do livro original, há cenas onde certos diálogos são bastante semelhantes à concepção de Wilde. A carga dramática adquire traços sinistros ao evidenciar o mundo degradante de Dorian, na sua crescente paranóia. Há uma impressionante fotografia gótica de Roger Pratt que emoldura o submundo da Londres da Inglaterra do século XIX, com tons cinzentos, azulados. A trilha sonora de Charlie Mole é elegante, sombria, de extremo bom gosto. O filme mostra como um indivíduo é capaz de se influenciar por outrem — a relação de Dorian com Lord Henry foi fundamentada no sendo de influenciado e influenciador, respectivamente. A inocência inicial de Dorian é desfeita quando ele absorve a malícia do mundo orgasmático social do Lord. O autor Oscar Wilde desmascara sua sociedade imersa em hipocrisia e perversões de intrigas sexuais? Um estudo sobre a dualidade da prática do mal e da autoconsciência; da sexualidade irracional de uma ilusão de beleza que nunca é eterna.

Dorian Gray (ING, 2009)
Direção de Oliver Parker
Roteiro de Toby Finlay, baseado no livro de Oscar Wilde
Com Ben Barnes, Colin Firth, Ben Chaplin, Rebecca Hall,Rachel Hurd-Wood

Desejo na Arte

A arte pode fascinar. Evidencia o desejo, toca o senso da sentimentalidade humana. Há pinturas que despertam um interesse devido ao encantamento que proporciona para quem vê. Moça com Brinco de Pérola recria o universo do renomado pintor holandês Johannes Vermeer. O quadro que intitula o filme é considerado o ápice da criação conceitual do artista - uma espécie de Monalisa de Da Vinci, no qual existe o mistério sobre a mulher que teria posado para o quadro. É, através deste princípio, que o filme centraliza sua trama ficcional - quem teria sido a modelo do famoso quadro? O filme é baseado no livro da escritora Tracy Chevalier que foi realizado em cima das suposições misteriosas que rondam a identidade da moça que pousou para Vermeer. Quem conhece a obra, observa o quão enigmática e dúbia é a expressão feminina da figura. Dirigido por Peter Weber, o roteiro deste filme é bem adaptado da obra literária - respeita-se mais a poesia, o tom intimista é caracterizado e evita-se dos clichês românticos para dialogar mais com o senso da Arte. Delft, Holanda, 1665. A jovem camponesa Griet (Scarlett Johansson) de dezessete anos é obrigada a trabalhar, após seu pai ficar cego em conseqüência dos efeitos de uma explosão numa estufa. Para sustentar a família, ela se torna empregada doméstica na casa do pintor Vermeer (Colin Firth); tendo que se adequar ao ritmo intenso de trabalho, aos rigores das formalidades e frieza estabelecida pela família rígida. A convivência é estranha, sem acesso a maiores intimidades. Há na família a sogra autoritária, Maria Thins (Judy Partiff) e a própria mulher de Vermeer, Catharina (Essie Davis) - uma mulher ciumenta ao extremo, arrogante, que trata os empregados com grosseria. A indisposição é nítida, as duas senhoras da casa desprezam a criada. Em seus afazeres domésticos, Griet passa a limpar o ateliê do pintor, é quando o princípio argumentativo do filme exibe seu fascínio: a jovem empregada entra no universo sedutor do pintor. O que há tanto na arte que instiga? Inesperadamente, Griet torna-se objeto de inspiração de Vermeer, faz com que o artista a use como peça fundamental para seu trabalho: ela será o seu modelo.

O filme mostra como se fundamentou essa relação entre artista e mulher - como uma espécie de pupila, Griet passa a interagir com a fruição artística de Vermeer. Além de limpar e arrumar o estúdio, onde Vermeer passa quase o dia todo, ela o auxilia na produção de seus quadros. Mistura as cores para que ele possa pintar; compartilhar do universo conceitual da arte que só alguém tão sensível pode compreender. É interessante como o roteiro mostra que uma mulher analfabeta, sem instruções maiores, consegue perceber a grandiosidade da sensibilidade de um quadro - é Griet que consegue olhar com os olhos do pintor; é ela que serve de um amparo a um homem que não consegue ter o devido reconhecimento de seu trabalho. A admiração surge na convivência de ambos - a criada tem um olhar crítico, sensível e aguçado, faz com que o pintor acate suas opiniões. E o desejo é sutilmente aforado entre ambos? A família de Vermeer apenas vê seus quadros como algo que possa servir de lucro; renda no final do mês. Em função disso que a sogra administra as contas quase falida da família, comercializando os quadros de Vermeer para o mecenas Van Ruijven (Tom Wilkinson).

Griet é alvo de desejo sexual por parte dos personagens masculinos do filme. Além de existir certa tensão e admiração sexual dela com Vermeer - bem verdade, um pintor acaba por ser fortemente atraído por seus objetos de inspiração, talvez por isso ele mostre uma atração curiosa pela sua criada - a moça é cortejada por Pieter (Cillian Murphy), o filho do açougueiro da feira que freqüenta diariamente. Com uma aproximação pós-flertes constantes, Griet passa a namorar o rapaz. É interessante que ela sente desejo pelo jovem que a faz repensar sua vida - ele a pede em casamento, quer constituir família. Em paralelo, há o vilanesco mecenas Van Ruijven que nutre um tesão obsessivo por Griet, deseja concretizar uma relação sexual com ela, ainda não obtenha retorno. Mas é Vermeer que viabiliza um fascínio em Griet - o artista angustiado só consegue se libertar de suas dores quando pinta, ou melhor: na companhia da empregada que parece disposta a entendê-lo, a dividir com ele desse mundo de nem sempre percebido. Fica evidente que Griet tem uma relação mais de sexo com seu namorado Pieter, puramente satisfação carnal, visto que seu prazer e emoção se sustentam mais nos seus laços diários de convivência com o pintor Vermeer. Já este, sufocado numa vida insatisfatória, ao lado de uma mulher que prioriza seus bens materiais numa vida superficial. A química de Johansson e Firth é nítida em cena - ela com seus silêncios momentâneos, delicadeza e olhares tímidos; ele na voz baixa, na introspecção e na aura de mistério.

Cada olhar, diálogos, a aproximação entre os dois mostra essa curiosidade de um para o outro - e o charme do filme se sustenta nesse fascínio gradual da relação dos dois. No misterioso mundo da pintura, tudo faz sentido? O tom da relação platônica dos dois é perceptível, mas ao passo que Griet intensifica sua convivência com Vermeer - quando ele resolve pintá-la com o tal brinco de pérola - o senso de ciúme da esposa parece prejudicar tudo. É quando a realidade cumpre de diluir a ilusão que ambos pareciam viver. A construção dos personagens é pura reflexão também, além de evidenciá-los em suas cargas de emoção contidas, como pessoas que não podem mostrar o que sentem de fato. A fascinante trilha sonora criada por Alexandre Desplat recobre os momentos mais dramáticos com um apuro sonoro. A sofisticação visual, devido a uma impressionante fotografia de Eduardo Serra que se apropria das luzes das velas de Vermeer, é perfeita. O filme mostra como pessoas de diferentes mundos podem estar em sintonia - Vermeer percebeu que Griet pertencia ao seu universo, ainda que de bases sociais distintas. Havia nela a mesma percepção intuitiva para as luzes, as cores, ao mundo misterioso que só a pintura proporciona. E é nesse sentido que o tesão entre ambos coexistia, na percepção. Poderia ambos viver uma relação afetiva como amantes? Talvez, com tantas diferenças de classe, religião e educação tudo tende a ser apenas platônico. Um filme que discute os sentimentos humanos, além de ser um recorte íntimo sobre o despertar da sensualidade e da sensibilidade artística.

Girl With a Pearl Earring (Grã-Bretanha/Luxemburgo, 2003)
Direção de Peter Webber
Roteiro de Olivia Hetreed, baseado no livro de Tracy Chevalier
Com Scarlett Johansson, Colin Firth, Tom Wilkinson, Judy Parfitt, Cillian Murphy

Perversa Aristocracia

O que torna alguém seduzível? O diretor britânico Stephen Frears conduz sua leitura ousada do romance epistolar de Chordelos de Laclos, no instigante Ligações Perigosas. O roteiro do filme foi adaptado com maestria por Christopher Hampton, que captou bem a essência da trama libidinosa literária com sensos de paixão, desejo e traições humanas. O terreno perverso da sedução argumentativa é na França de 1788, antes da Revolução Francesa que viria a abalar o país. Dois aristocratas dissimulados - a Marquesa Isabelle de Merteuil (Glenn Close) e o Visconde Sebástian de Valmont (John Malkovich) - gostam de usar da inteligência, do poder da sedução e da vaidade para manipular pessoas a sua volta. Ambos vivem mascarados, numa vida dupla que nem mesmo a sociedade tem conhecimento - a crítica de Laclos é desnudar os indivíduos sádicos da aristocracia francesa daquele período. Merteuil recruta Valmont para um plano - ela quer que ele seduza a ingênua Cecile de Volange (Uma Thurman), visto que a garota virgem é a prometida do seu ex-amante. Num ato de vingança, Merteuil deseja acabar com a reputação da jovem que vai se casar com seu ex-cônjugue Batilde. Mas, Valmont acredita que este plano é uma tarefa simplória - de acordo com sua reputação de sedutor incondicional, este plano funcionaria como algo bastante banal e poderia manchar seu nome. É quando ele sugere à Marquesa um plano mais ousado: seduzir, provocar e devorar sexualmente outra vítima, Madame de Tourvel (Michelle Pfeiffer), uma recatada mulher religiosa e casada. Se o plano der certo, a Marquesa de Merteuil terá uma noite de sexo intenso com ele. Está firmado o pacto de luxúria, sedução e libido. O promíscuo sedutor Valmont decide seduzir então as duas mulheres. Stephen Frears promove seu filme através destes dois personagens sem escrúpulos, malvados, que se divertem por flertar e devorar sexualmente pessoas alheias. Diferente da versão adaptada por Milos Forman, no mesmo ano ("Valmont", com Annette Bening e Colin Firth como protagonistas), esta produção tem um peso impactante pela direção cuidadosa, diálogos densos - o verniz da sexualidade imposta por Frears é mais expressivo, pervertido, ganancioso. Os elementos daquela época permanecem até hoje, são questionamentos tangíveis - a banalização do mal, os sensos de pureza, dignidade e moral; os sentimentos e valores corrompidos.

Tão original, polêmico e contestador - o romance original publicado em 1782 tornou-se um marco na literatura. Para tanto, Stephen Frears realiza um filme que desnuda o comportamento, o senso da libido e da crueldade humana. É um filme picante que entrega as sujeiras de uma sociedade que insiste em ser dissimulada, vive de aparências. Sociedade que varre a promiscuidade por baixo do tapete? A intricada trama estuda a sedução, o jogo da manipulação humana no sustento do sexo como forma de prazer, de fuga contra um tédio mordaz; pela simples satisfação de usar a sexualidade como forma de subjugar outrem. A percepção da sedução coloca a teia relacional de Merteuil e Valmont como pessoas insensíveis, maldosas, capaz de entreter-se com seus jogos perversos sexuais - qual objetivo de uma mulher vingar-se de seu amante atacando sua virginal prometida? Há um senso maquiavélico estabelecido no roteiro, deixa claro como o sexo pode ser útil ao prazer da carne, como um senso de imoralidade. Afinal, para uma rigorosa sociedade, firmada no absoluto falso moralismo, tudo existia a cargo da sexualidade – relações encobertas de traição, de infidelidade, de pessoas num casamento infeliz. Valmont investe na sua sedução com Celice, educando-a sexualmente, manipulando o sentimento da jovem que está apaixonada pelo seu professor de música, Danceny (Keanu Reeves). Em paralelo, assume sua dissimulação, ao colocar-se como um homem centrado, à favor da hospitalidade de Madame de Tourvel que, aos poucos, entrega-se ao charme e convivência solícita de Valmont.

Marquesa de Merteuil e Valmont são hipócritas, dois indivíduos que ferem a sociedade com suas mentiras, falsas personalidades - é interessante como são vazios existencialmente. Amantes no passado, rivalizam-se com interesses próximos. A maneira como o roteiro os coloca, torna tudo irônico: usam da sedução para penetrar uma sociedade que acredita em suas máscaras comportamentais. Eis o contraste, pessoas negligenciam sua essência de alma em função de uma máscara social. Externam o que não são? Merteuil é uma mulher ferida pela vida, mal amada, destroçada por não ter um amor verdadeiro - para isso, banaliza-se em jogos de sedução, em transas furtivas com homens casados, em tramas psicóticas sexuais com seu confidente Valmont. Este, um representante da masculinidade humana daquela época (que cabe ao mundo contemporâneo, bem verdade) - um homem que não se prende amorosamente a ninguém, usa do sexo para sustentar uma ilusória vida de conquistas, envolvido em noites libidinosas com mulheres diferentes. É o símbolo da virilidade, do típico machista, do homem descompromissado com a fidelidade? E o filme mostra esses dois seres em seus fascínios próprios - cada um ao seu modo - dentro de suas esferas orgásticas. O ser humano preenche seu vazio existencial, seu ócio e sua vida infrutífera apenas com sexo? Afinal, o que um jogo de manipulação pode trazer para vida destes dois?

Contudo, no jogo da sedução, existe uma regra: jamais se apaixone. A catarse no enredo surge no momento que o senso da sexualidade é elevado ao sentimental - em suas empreitadas da sedução, Valmont sofre quando se apaixona por Madame de Tourvel. Seria o surgimento do sentimento uma resposta a uma vida firmada em mentiras e compulsões sexuais? O que fazer para atenuar essa aflição? Pois, Valmont precisa manter seu acordo de sedução, tendo em vista a própria reputação de sedutor calculista que ele reserva a Marquesa de Merteuil - esta se desespera por perder as rédeas da manipulação dominante sobre o outro. O visconde reflete os próprios atos - estaria a se trair por perder a tônica de sedutor, ao deixar de querer todas as mulheres e apenas desejar a Tourvel? Estaria ele abrindo mão de seu poder de macho em função de um sentimento que nunca nutriu por ninguém? Os luxos da aristocracia da época; a trilha sonora de George Fenton exibe acordes dramáticos e elementos sonoros sensuais; a deslumbrante fotografia de Philippe Rousselot torna o trabalho técnico deste filme um puro requinte. Decerto, o grande triunfo deste filme é pelas atuações de Glenn Close e John Malkovich, em momentos inspirados, numa sintonia frenética através de diálogos afiados. Michelle Pfeiffer é o contraponto, pois exerce uma interpretação sensível e expressiva com uma mulher sofrida pelo amor. Um estudo carnal também sobre a vaidade, a ambição sexual, a pretensão humana em crer nos próprios atos de manipulação. Um conto provocante da sedução que atinge o reinado das contradições do sentimento. Eis toda a aristocracia desnuda, é puro ardor, clássico imbatível.

Dangerous Liaisons (EUA, 1988)
Direção de Stephen Frears
Roteiro de Christopher Hampton, baseado no livro homônimo de Choderlos de Laclos
Com Glenn Close, John Malkovich, Michelle Pfeiffer, Uma Thurman, Keanu Reeves

Teste de Infidelidade?

A traição é um provocante estímulo pra destruição de um relacionamento; dos abalos da carne; dos sentimentos em conflitos extremos. O ser humano não consegue ter o eixo de seu destino quando sofre pelo poder da tentação? O Preço da Traição exerce uma demonstração de como há indivíduos que podem ceder aos impulsos libidinosos da luxúria. E como o senso da traição provoca também a insegurança, o desatino, o aspecto da euforia traiçoeira da perdição do desejo. Catherine Stewart (Julianne Moore) é uma ginecologista bem-sucedida profissionalmente, mãe de Michael (Max Thieriot) e mantém um casamento conformado, mas amigável, com o professor universitário David (Liam Neeson). Obviamente, esse aspecto é logo construído para sofrer o abalo providencial da sexualidade no filme - Chloe (Amanda Seyfried), cujo personagem representa o título original do filme, é a figura da sedução, do desejo e do impacto destrutivo que exerce na família. Ela é uma prostituta de luxo, usa de sua beleza e do alto poder persuasivo do sexo para obter qualquer coisa. E é essa mulher misteriosa que vai servir de auxílio ao universo padrão conservador da vida de Catherine - esta, ao desconfiar que o marido a esteja traindo, decide contratar os serviços sexuais de Chloe. O roteiro de Erin Cressida Wilson articula-se do texto original, refilmagem do "Nathalie X", tem direção do egípcio Atom Egoyan que consegue sustentar um filme onde o sexo é seu princípio primordial, alicerce orgasmático. A dúvida estabelecida pela personagem principal, Catherine, é a mesma percepção do espectador ao ver o filme: será que ela é traída realmente pelo marido? Como testar, então, a fidelidade dele? É então que esta polêmica é atiçada por Chloe - uma prostituta bela, provocante, sexualmente perversa pode testar tudo isso? Como confiar na lealdade de alguém?

Por pautar questões inerentes aos aspectos da infidelidade, das inseguranças provenientes de um relacionamento conjugal já frágil, o filme coloca a relação da traição como algo a ser refletido. Será que um casamento sem sexo constante, cumplicidade e com o frescor do desejo pode ser sinônimo de caos? O que fazer quando uma relação não tem mais química sexual ou mesmo um elo sentimental? Catherine é a esposa que demonstra insegurança ao observar um marido ausente, introspectivo, que parece flertar com outras mulheres - a desconfiança surge quando ele perde o vôo de volta a sua casa e falta a festa de ‘aniversário surpresa’ que ela concebeu para ele. Eis que o tormento, o medo de ser trocada por outra, faz com que a angústia tome conta de si. Catherine contrata a prostituta Chloe para seduzir - mas, será correto um ser humano usar de todas as formas possíveis para testar o caráter de outro? Como saber se alguém é fiel contigo? O diretor Egoyan mostra o fracasso familiar que é a vida dessa ginecologista que não consegue nem manter um diálogo próximo com seu filho Michael, muito menos se aceita plena intimamente para seduzir seu marido. Eis a crise da meia-idade? É o paradoxal, uma ginecologista que não consegue entender sua própria sexualidade, nem seu universo feminino.

O tom sexual atinge uma maior proporção quando o conflito entre Catherine e Chloe é evidenciado. O frisson erótico do filme torna-se sustentável, a garota de programa passa a imergir sexualmente na vida da médica. É quando o senso de provocação libidinoso cresce. Chloe seduz e envolve-se com Catherine. O roteiro mostra como a garota consegue manipular e instigar a luxúria ao seu redor - detentora de um poder sedutor violento, ela atordoa Catherine até quando narra seus flertes e encontros com David. Há uma relação estranha de ódio e desejo obscuro? Ainda que Catherine sinta-se aflita por saber que seu marido a trai, ela não consegue deixar de ter um tesão pela prostituta que modifica toda sua vida - excita-se com suas histórias dos encontros secretos com seu marido, enquanto estimula um interesse pela moça. É então que nasce uma relação lésbica? O que parece ser um estudo sobre infidelidade, reflete num jogo obsessivo quando Chloe parece nutrir um desejo possessivo e destrutivo por Catherine. O que parecia uma teia dramática de traição atinge um percurso de paranóia sexual - o que esconde essa prostituta? Será que tudo que ela diz é verdade? Atrás de toda essa perversão há mentiras? Amanda Seyfried convence como uma sedutora psicótica; Julianne Moore retrata bem uma mulher a beira do colapso de nervos por ser traída e por ser alvo de desejo.

Onde a libido faz todo o sentido nesta abordagem de sedução, dá pra compreender a razão do título original do filme - Chloe é a personagem que insere questões de sexualidade; de desejos e segredos da perversão da luxúria; do teor da loucura de alguém determinada pelo tesão. A mulher que serve de teste ao provável adultério do marido de Catherine, é a mesma que age pelo seu vício possesso. Chloe é enérgica sexualmente, a ponto de usar até do próprio filho de Catherine (um adolescente em fase de ebulição sexual, se sente atraído por qualquer mulher que possa lhe proporcionar fácil orgasmo) para conseguir sua mãe. Qual razão de tanta obsessão sexual? Este pequeno filme retrata, através de seus personagens, a deturpação dos sentidos humanos - o sexo pode mesmo colocar o que há de mais frágil na humanidade? O sexo destrói tudo que é coerente? Interessante que todos os personagens parecem estar rodeados pelo sexo - em anseios, percepções e atos. A cena onde Chloe transa e masturba Catherine num quarto escuro é bastante ousada, excitável. Boa atmosfera sensual adotada, sutileza picante, ao mostrar os seios intumescidos e gemidos femininos. Não é um filme avassalador, mas seu pequeno recorte representativo proporciona uma boa reflexão sobre a traição, os sentimentos destroçados e desejos reprimidos.

Chloe (EUA, 2009)
Direção de Atom Egoyan
Roteiro de Erin Cressida Wilson, baseado no argumento de Anne Fontaine
Com Amanda Seyfried, Julianne Moore, Liam Neeson, Nina Dobrev, Max Thieriot

Trágica Atração?

Woody Allen sempre teve o cuidado em tratar a natureza humana com seus vícios e também virtudes, de maneira bem peculiar. Ofertando roteiros inteligentes, nos últimos anos, evocou uma maior intimidade sobre o lado sexual das motivações comportamentais da humanidade. O orgasmático Match Point é um filme que mantém seu característico olhar sobre a feminilidade, porém aqui há uma concepção sobre a esfera da virilidade masculina - é a noção do desejo de um homem, suas malícias e anseios. E o roteiro humanista aqui tem o verniz quente do senso da traição como premissa. É um conto de sedução, numa trama bastante intricada, onde a tônica carnal humana verbaliza seus sentidos. Neste trabalho, não há nos traços psicológicos nem um personagem alleniano - não existe aqui um alter-ego do diretor, nem as habituais crises cômicas. Retira-se as ironias e neuroses, insere um thriller-erótico instigante. Sai Nova York e o terreno narrativo centra-se no charme de Londres. A trama tensa foca na percepção de Chris Wilton (Jonathan Rhy-Meyers), um jovem ambicioso que almeja ascender socialmente. Para isso, haverá nele boas condutas morais? Ex-tenista, dá aulas num clube. É quando faz amizade com o rico empresário Tom Hewett (Matthew Goode) que a vida dele muda. Através do universo de Tom que o roteiro de Allen providencia a catarse do personagem protagonista - Chris ganha amizade e um forte laço de cumplicidade se sustenta quando passa a fazer parte do círculo de vida luxuosa de seu amigo. Quando conhece Chloe (Emily Mortimer), irmã de Tom, o destino canaliza melhor intimidade neste novo universo social. Chris entra na alta sociedade inglesa, passa a namorar Chloe e ganha um importante cargo na empresa de sua família. A aparente felicidade entra em conflito quando Chris conhece Nola (Scarlett Johansson), aspirante a atriz e namorada de Tom. O que fazer para conter o tesão que induz a pensamentos libidinosos? Woody Allen inspira-se no universo de Dostoyevski, o romance clássico "Crime e Castigo", para motivar a essência deste filme refinado que aborda os delírios do desejo. É um trabalho mais ardiloso e impressionista do diretor.

Qual razão para trair? Chris torna-se obcecado pela figura sexualizada de Nola, não consegue livrar-se dos desejos que manipula seus sentidos. A atmosfera crescente de tensão reveste o enredo, pois Woody Allen cria a sedução gradual entre Chris e Nola - um homem e uma mulher que não conseguem fugir do desespero do tesão; da aflição de um possuir o outro. E o perigo parece ser evidente quando ambos passam a sustentar uma tórrida relação sexual, numa teia de mentiras compulsivas. É a sexualidade da relação da traição, é o universo dos amantes sendo expostos. Chris e Nola fogem de suas vidas para vivenciar um sexo faminto, uma ilusão sem cuidados. Afinal, todo ser humano não pensa o quanto doloroso é trair alguém? Nenhuma traição é descoberta? Chris representa um homem disposto a manter uma vida de luxo, imerso numa teia de mentira do seu matrimônio, ainda que sinta uma paixão avassaladora pela amante. O universo dramático do filme aumenta quando a relação dos dois se intensifica. Afinal, tudo que ocorre na vida é acaso da sorte? A construção da infidelidade é o foco primordial estabelecido por Allen, ainda que ele também exponha reflexões sobre assuntos de amor, família e preconceito social. Num jogo instigante sobre rede de relacionamentos, desejos e encontros amorosos - o diálogo com a moralidade também é verbalizada.

E Allen mostra que, muitas vezes, um relacionamento iniciado em mentiras e segredos - nem sempre é duradouro. A infidelidade machuca? O perigo é nítido, assim como o senso de destruição. Inicialmente, Chris sustenta seu vício no sexo pela mulher que o induz à libertinagem. Consumido pelo desejo, só consegue pensar nos momentos pequenos que pode transar e sentir o corpo de Nola. Após a consumação do ato, permanece o sentimento? É o que coloca o diretor roteirista neste filme. E a densidade ganha formas trágicas quando Nola passa a sentir-se indisposta quando à indecisão de Chris - deveria ele abdicar de sua vida cômoda em luxo e aparências? Ou assumir esta relação que começou como um fogo de paixão sexual? Eis o lema da infidelidade - a relação, tanto para o conjugue, quanto para o amante, torna-se inviável. É necessário escolhas, há momentos que o sufoco é crescente, o martírio também. O mundo de luxúria ganha preocupação quando Chris reavalia seus atos, reflete seu mundo interior e exterior. Instaura-se nele um desespero diante da pressão de Nola em ser valorizada e assumida - ela não se conforma com sua condição de amante -, ao passo que o desequilíbrio se opera em sua vida. Chris e Nola atingem uma relação perigosa, num tormento permanente. A espiral de desentendimentos e discussões atiça e queima fogo no mundo de sexo, paixão e desejo.

Como ceder às tentações e manter uma relação estável, com boa ética? Allen conduz seus personagens com cuidado, o psicológico exposto através do tom intimista, delineando sensações e anseios bastante tangíveis. É interessante a proximidade, pois é um roteiro coerente com os sentidos humanos. A construção da ambientação dos diálogos, da maneira como a câmera percorre os atores em cena e até o uso da trilha sonora é detalhada - a impressão de que um pequeno universo tenso é desnudo aos olhos de quem observa. A atmosfera de adultério transforma o filme num drama energético trágico, é quando certas reviravoltas tomam proporções maiores. A concepção interpretativa de Jonathan Rhy-Meyers é contida, ele coloca uma aura misteriosa que seu personagem pede - um ator bastante talentoso. Porém, é Scarlett Johansson que aqui compõe uma personagem dotada de sensualidade e emoção, expressividade interpretativa. Um filme que pauta a condição da culpa, acima de tudo. Woody Allen conduz um estudo sobre como o ser humano pode ser dono de seu destino, mas a sorte pode abusar providenciando surpresas. E como o sexo provoca infortúnios ao homem, limitado aos desejos carnais que retiram o senso racional. A favor de retratar questões do existencialismo, das falhas e dúvidas inerentes a todos humanos, o diretor constrói aqui sua pequena obra-prima.

Match Point (Reino Unido, 2005)
Direção de Woody Allen
Roteiro de Woody Allen
Com Jonathan Rhys-Meyers, Scarlett Johansson, Emily Mortimer, Alexander Armstrong, Matthew Goode, Brian Cox

Segredos Desnudados

Pecados Íntimos concebe uma reflexão sobre a insatisfação humana - diante da vida aparentemente perfeita; de sonhos não concretizados e de desejos que nunca são silenciados. Ninguém é o que aparenta ser? É a desconstrução das aparências, do pseudo-moralismo e das falsas inocências. O filme, dirigido por Todd Field, revela-se como um estudo orgástico sobre os vícios e também o que há de mais obscuro na teia da perversão humana. Como se libertar de uma vida que não há prazer? O que fazer para diluir a insatisfação que torna o cotidiano tedioso? Sarah Pierce (Kate Winslet) é uma típica dona de casa, casada com Richard (Gregg Edelman), vivem numa cidade suburbana dos Estados Unidos. Regularmente, leva sua filha a um parque próximo de sua residência. E é lá que o princípio argumentativo do filme se estabelece. Sarah conhece Brad Adamson (Patrick Wilson), quando este, em companhia do seu pequeno filho, surge em seu destino. Obviamente, o tesão aflora, desarma dois seres desconhecidos num ultimato. Engana-se no sentido da amizade de ambos, é nítido que o desejo torna-se avassalador tanto quanto a intimidade casual. O que fazer para driblar a libido que se apodera dos dois? Brad é desempregado, casado com Kathy (Jennifer Connelly). Sarah, não vê brilho em sua vida apática. E, para completar, quando apenas acredita-se que o mote é a sexualidade pela traição - a espinha dorsal do filme ainda ousa em focar em Ronald James McGorvey (Jackie Earle Haley): o vizinho pedófilo de Sarah e Brad que mexe com a comunidade, sua patologia causa repúdio em todos. O que todos esses personagens centrais têm a esconder? Partindo da premissa onde entre quatro paredes todos os seres humanos expressam suas verdadeiras tônicas, anseios e comportamentos - o filme revela-se perturbador. O tom emocional da perspectiva do roteiro de Tom Perrotta faz pensar muito na questão da infidelidade.

O filme é pontuado em off por um narrador onisciente, faz com que todos os personagens ganhem sustância e intimidade - além do psicológico ser exposto. É a voz da verdade que expõe a hipocrisia de seres humanos que preferem manter uma vida onde não existe felicidade. E o prazer de se viver? E a delícia do gozo de ter o orgasmo pela própria vida? Ao desmascarar os universos de um microcosmo de mundo, pode-se refletir em cima de uma abordagem bastante sexual. Há o universo de Sarah - onde tem que lidar com seu marido viciado em pornografia, um homem que precisa se masturbar com vídeos eróticos e ausenta-se do convívio e da atenção à sua esposa insatisfeita. É onde o título original do filme exerce seu ignificado: afinal, seriam esses adultos representações de crianças que não amadureceram? São homens que não assumem suas responsabilidades? E Todd Field mostra que estes imaturos precisam da sexualidade pra externar seus vícios, suas vontades e suas fragilidades de mundo particular. A traição é o foco principal, mas a sensibilidade conduz os personagens. Sarah não se sente confortável com sua vida morna. Muito menos tem habilidades e vocação para a maternidade. Sente-se presa. Da mesma maneira, encontra-se Brad - um homem submisso à esposa que o comanda com rédeas curtas, dita regras e coordena financeiramente seu lar.

Instigante o roteiro, pois coloca dois personagens em uma vida isenta de prazer - Sarah decepciona-se com o marido que recorre à pornografia da internet; Brad não consegue mais ter relações sexuais com Kathy. Entende-se que a traição não é algo justificável, mas a situação de fragilidade que enfrentam os personagens é evidente. E o que falta para esses dois é um tempero mais excitante, algo mais quente em suas vidas - talvez, por isso, ambos sentem-se tão atraídos e necessitados de consumir esse tesão irrefreável. Perigosamente, Sarah e Brad mantêm um caso tórrido em tardes diárias - é interessante que a atração dos dois se mostra de maneira carnal. É tanto que o sexo é selvagem, agressivo, como se cada um quisesse expurgar as insatisfações de dentro do âmago quando atinge o orgasmo. E como fazer para manter esse segredo? Do outro lado, há a realidade de um homem que tem disfunção sexual e precisa se ajustar a uma sociedade preconceituosa, crítica e predatória. E como Ronald irá adaptar-se nesta sociedade que não o aceita mais? E como conter seus ímpetos perversos sexuais? A proximidade dos personagens é evidenciada por existir, a partir do sexo, a motivação de mudar a condição que eles se encontram. E como o senso de culpa reveste estes indivíduos diante de suas imperfeições. É surpreende a humanização da personalidade psicológica do pedófilo aflito por uma segunda chance.

A inteligência na direção cuidadosa do diretor Field é evidente na condução de um elenco altamente natural, afiado. Onde tabus díspares como adultério, feminismo e crises existenciais familiares são aprofundados num enredo perspicaz. Atuações intensas de Kate Winslet e Jackie Earle Haley são lúcidas, puro assombro. O charme sexual de Patrick Wilson empresta sua vocação de virilidade para símbolo do pecado que o filme lhe reserva - é o homem desejado por todos, capaz de instigar qualquer mulher num casamento superficial. Realiza-se uma desconstrução social aqui - o "American Way of Life" é o mote. Enquanto o narrador conta sua quente história, com certa ironia até - esses personagens são ainda mais transparentes aos olhos nús. E é onde conceitos de solidão, sentimento e até esperança é elevado à potência. Sarah e Brad representam também pessoas que sentem necessidade não só de externar a libido - é um homem e uma mulher que se entregam ao amor que nasce do prazer, da chance de mudar uma vida tão conformista. E o filme indaga até o fim se é necessário permanecer em segredo ou deve-se provocar uma catarse para se viver tudo que se quer. É um estudo íntimo sobre anseios sexuais, de como o ser humano sofre tanto em condenar-se e reprimir seu próprio instinto - por que não viver tendo a felicidade e o prazer? Nada mais saboroso que um trabalho de investigação da sociedade dissimulada. Afinal, questionar comportamentos humanos é algo sempre perturbador.

Little Children (EUA, 2007)
Direção de Todd Field
Roteiro de Todd Field e Tom Perrotta, baseado no livro de Tom Perrotta
Com Kate Winslet, Patrick Wilson, Jennifer Connelly, Jackie Earle Haley

Amor Impossível?

Romances tendem a mexer com a sensibilidade, pois exerce uma representação sobre as características do sentimento e dos desejos humanos - até para os mais racionais, é difícil não se contagiar com um enredo que aborde contextos sobre amantes, humanos absortos em vontades conseqüentes da paixão. A importância de uma boa trama com teor romântico é reservado à necessidade de química de um casal em cena. Ou mesmo na transparência da impossibilidade do tal amor proibido. O que move No amor e na guerra é justamente o aflorar de uma relação tão improvável que se torna viável. Baseado nos diários de Agnes Von Kurowsky, que vivenciou uma trajetória verdadeira de amor, durante o período da Primeira Guerra Mundial, com um jovem que viria a ser um dos maiores representantes da literatura do século XX, Ernest Hemingway. O material foi lançado originalmente em 1989 (organizado por Henry S. Villard e James Nagel), tornou-se best-seller, exercendo fascínio e curiosidade. O livro trazia cartas anexas de Agnes ao escritor, bem como diários sobre o relacionamento que tiveram. É então que o filme do diretor Richard Attenborough consegue trazer toda a essência dessa história verídica, condensando todas as partes principais, inclusive diálogos inteiros. O filme foca na fase onde um jovem Ernest (Chris O'Donnell) se alista para lutar na guerra, como repórter no norte da Itália. Rapidamente vivencia o horror e a crueldade da atmosfera desse período. Sofre um atentado, tem a perna gravemente ferida e corre risco de amputação. É então que encontra amparo, num hospital em Milão, no auxílio de uma dedicada enfermeira austríaca, Agnes (Sandra Bullock). Ela mostra um carinho nítido, subitamente ambos tornam-se ligados. Disposta a salvá-lo, ela convence os médicos a tentar um tratamento alternativo, para que seu paciente não sofra amputação na perna. Durante o processo de recuperação, Ernest sente-se atraído pela enfermeira que o trata formalmente, mas com um zelo intenso. É o tesão que cresce, e o casal não consegue mais conter os delírios de desejo. Contudo, a relação de ambos parece predestinada ao impossível - como lidar com um sentimento naquele momento? Seria imaturo viverem aquele anseio louco? O que fazer para conter esses ímpetos? Curiosamente, essa história verídica inspirou o já então escritor Ernest Hemingway a conceber sua maior obra-prima, o livro Adeus Às Armas.

O filme foca no doloroso contexto do plano da Primeira Guerra Mundial - onde Ernest transita como enfermo nesse período, repleto de dores de corpo e alma. É onde ele vivencia a violência, a atrocidade ao seu redor. São amigos que perdem, feridos e vítimas de batalhas que desmontam toda sua visão de mundo. É onde confrontam um momento onde perdas são constantes, numa esfera de emoção e conflitos adornados de desespero. E é nessa teia sombria que Ernest e Agnes são apanhados pelo sentimento, no fogo cruzado de um desejo que cresce na guerra - como imaginar que existiria algo tão prazeroso a brotar ali? E o casal parece não entender como uma relação tão súbita pode dar certo. Agnes demonstra certa frieza aparente, mas na verdade é uma máscara pra conter seus desejos pelo jovem rapaz, seis anos mais novo, que atiça e seduz - interessante a maneira de colocar um Ernest sexual, dotado de desejos juvenis masculinos, disposto a provocar a formalidade e distância estabelecida pela enfermeira que cuida de seus ferimentos. E o filme monta essa relação de ambos, onde a sintonia dos dois cresce, com anseios libidinosos sutis e uma tensão sexual a ponto de explodir. Seria mais que um flerte? O que fazer para colocar em prática esse sentimento? Para Agnes, existia a insegurança. Ernest, um típico passional, prefere demonstrar seus desejos e também é o primeiro a colocar em questão: ele a ama, então a quer para si. Há frases que exemplificam essa atmosfera passional que o casal concebe, ainda mais que o roteiro tende a centralizar apenas nos dois a problemática do argumento.

Interessante que a tensão sexual dos dois é evidente, ainda que ambos não explorem logo esse sentido. Entre flertes, diálogos sentimentais e sintonia de uma notável química - Ernest e Agnes simbolizam o envolvimento lúdico, a relação natural de um homem que ama uma mulher e vice-versa. Eles estabelecem um envolvimento intenso, ainda mesmo antes de se tocarem - e o roteiro, bem verdade, fiel ao material do livro, consegue transpor essa relação de sentimento e desejo que o casal explora. Interessante também a forma maternal que Agnes exerce sobre Ernest - enquanto cuida de seu ferimento, com medo de que não vire uma gangrena, ela o toma com todos seus cuidados. E é ela que estabelece também o senso de racionalidade na relação de ambos - será que dará certo? Um rapaz tão novo assim iria querer algo sério com uma enfermeira? É possível acreditar nos sonhos que esse rapaz expressa? E Agnes contraria as regras - tanto do hospital (por decidir cuidar dele sozinha, opondo-se a possibilidade dele amputar a perna) quanto da sociedade (uma mulher que decide ser dona de seu próprio destino). E traçam planos pro futuro, porém reviravoltas são expostas no filme - e o casal precisa mostrar, de fato, se o sentimento é capaz de enfrentar todos os obstáculos. É onde mágoas ocorrem, tons mais emocionais são ocasionados por situações e o casal parece entrar em catarse negativa. Todo o filme é narrado sob a voz e perspectiva feminina de Agnes. Interessante que ao encenar o seu diário, o filme foca nesse contraponto de amor difícil e sofrimento diante das hostilidades da guerra.

O mais prazeroso no roteiro é como a delicadeza, a transparência de sentimento consegue ser expressa em cena. Há um desempenho contido, porém bem personificado por Sandra Bullock - talvez, por ela própria ter lido o livro mais de duas vezes e conhecer toda a trajetória real, consegue representar bem a sensibilidade de Agnes Von Kurowsky. A direção de Richard Attenborough prioriza o melodrama plastificado de romance impossível, explora bem os closes e na dualidade desse casal. Chris O'Donnell expõe um Ernest mais imaturo na primeira metade do filme, contudo é na segunda que ele estrutura uma dose de melancolia e um olhar mais rígido ao seu personagem real. Com uma melancólica melódica trilha sonora de George Fenton, fotografia de Roger Pratt; o filme se propõe a mostrar que, às vezes, relações efêmeras podem ecoar para toda uma eternidade - são intensas, repleta de paixões que cicatrizam seres amantes. A cena que ambos dançam nus, num quarto de bordel, é puro deleite romântico. O tom realista do filme atinge o ápice nos momentos finais, onde os personagens reais mostram ao que veio e tudo é exposto com sinceridade numa densa cena triste. O amor consegue evocar a beleza de mundo, mas também conduz às reformas íntimas que são puramente reflexões. E amar também é sofrer de ódio, de orgulho e de dor que é difícil esquecer. E é um trabalho que pauta um breve período de sensibilidade, não menos significativo, de um escritor que é um ícone da literatura.

In Love and War (EUA, 1996)
Direção de Richard Attenborough
Roteiro de Allan Scott, Clancy Sigal, Anna Hamilton Phelan
Com Sandra Bullock, Chris O'Donnell, Mackenzie Astin, Ian Kelly

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